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“Uma espécie de farra com o dinheiro público”, definiu a promotoria do Ministério Público da Paraíba, em trecho da denúncia apresentada contra o padre Egídio de Carvalho Neto, de 56 anos.
O ex-presidente do Instituto São José, responsável por gerir o Hospital Padre Zé, em João Pessoa (PB), está preso, acusado de ter chefiado um esquema de desvio e lavagem de dinheiro público por pelo menos dez anos à frente da instituição filantrópica.
Enquanto a unidade de saúde operava com dificuldades e acumulava cada vez mais dívidas, deixando desamparados pacientes em situação de vulnerabilidade, o líder religioso teria tocado um gabinete de corrupção que lhe garantiu uma vida de luxo e ostentação.
Desvio de R$ 363 mil em aparelhos para tratamento de Covid-19
Um dos episódios que mais chamaram atenção dos promotores teria acontecido em 2021, em plena pandemia da Covid-19. Uma auditoria feita recentemente pela atual gestão do Hospital Padre Zé descobriu que Egídio teria autorizado a compra de 38 monitores multiparamétricos — essenciais para o tratamento de pessoas com Síndrome Respiratória Aguda Grave —, no valor de R$ 363,9 mil, com recursos adquiridos por meio de convênio com a prefeitura de João Pessoa.
Os aparelhos, que tratariam pacientes pobres com Covid-19, nunca teriam sido entregues. Em diálogo obtido pelos investigadores, a diretora Jannyne Dantas afirma, por áudio, que os monitores de fato não foram entregues e que “a nota fiscal seria fria”.
Nesta sexta-feira, o religioso teve a prisão preventiva mantida após audiência de custódia e seguiu para a Penitenciária Especial do Valentina de Figueiredo. As investigações do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) elencam que o padre, durante todo este período:
- Adquiriu 29 imóveis luxuosos, em estados como Paraíba, Pernambuco e São Paulo;
- Investiu em projetos de reforma e arquitetônicos;
- Quitou dívidas com dinheiro do instituto;
- Comprou ao menos dois carros considerados de alto padrão;
- Fez questão de mobiliar suas casas com obras de arte e relíquias religiosas que eram adquiridas em nome do hospital;
- Esbanjava adegas com um “sem número” de bebidas alcoólicas, com média de R$ 1 mil cada;
- Pagou a faculdade de Medicina do sobrinho em São Paulo, com mensalidades de R$ 13 mil;
- Levava uma vida incompatível com o salário de cerca de R$ 15 mil: elevou seu rendimento mensal médio para R$ 140 mil.
Renda decuplicada
Para colocar o esquema de pé por uma década, padre Egídio teria formado uma parceria com a diretora do hospital, Jannyne Dantas Miranda e Silva, e com a tesoureira do instituto e da unidade de saúde, Amanda Duarte Silva Dantas. Elas também foram presas.
O MP afirma, com base nas investigações, que há indícios de que o trio teria praticado crimes de lavagem ou ocultação de bens e valores, peculato, falsificação de documentos públicos e privados e organização criminosa. Com o esquema, o padre teria conseguido multiplicar em aproximadamente dez vezes seus rendimentos mensais. Entre janeiro de 2021 e setembro de 2023, as investigações apontam que ele movimentou R$ 4,5 milhões — uma renda de pelo menos R$ 140 mil por mês.
“Muitas das pessoas ouvidas durante a fase investigatória afirmaram que Egídio funcionava como verdadeiro ‘Monarca’, que não poderia ter contestada suas decisões, sob pena de severas punições. Funcionários do Hospital Padre Zé eram compelidos a acatar as ordens de Egídio, mesmo sabendo que manifestamente ilegais, para não serem prejudicados com uma demissão. O perfil de ditador também foi destacado nos depoimentos colhidos, principalmente de que tudo deveria ser do feito dele”, narra a denúncia.
Adegas gourmet
As investigações também apontam a obsessão do religioso por colecionar bebidas alcoólicas de luxo. A promotoria narra que, na casa de Egídio, encontraram adegas gourmet contendo garrafas de vinhos, espumantes e champanhes.
Apenas entre 2022 e 2023, o levantamento aponta que o padre teria pago mais de R$ 120 mil em bebidas alcoólicas, sempre à mesma distribuidora. Uma perícia no celular do religioso mostrou que ele tinha como um dos contatos salvos uma “consultora de vinhos”, com quem conversava com frequência.
Artigos de luxo
A denúncia aponta também gastos elevados com a obtenção de obras de arte e relíquias religiosas “de elevados valores”. Estima-se que, entre 2022 e 2023, Egídio tenha desviado cerca de R$ 350 mil com este tipo de item. Tudo saía da conta da Ação Social Arquidiocesana (ASA).
Em um único ateliê, ele teria autorizado a compra de R$ 80,4 mil em quadros. No entanto, em visita às dependências do Hospital Padre Zé, os promotores acharam apenas 11 peças, incompatíveis com o valor.
“Durante o cumprimento das ordens de busca e apreensão autorizadas pela 4ª Vara Criminal da Comarca da Capital, foi verificado que todos os imóveis de propriedade de Egídio possuíam adornos luxuosos, tais como obras de arte, artes sacras, cristais (…) até agora foi apurado um gasto de R$ 358,5 mil apenas em um único antiquário especializado em arte sacra, além de diversas obras de arte oriundas do mesmo ateliê, onde foi perscrutado o gasto de R$ 80,4 mil (…) todos os pagamentos foram realizados por intermédio de contas bancárias do Instituto São José”, diz a denúncia.
Faculdade do sobrinho
As investigações apontam ainda que, embora a renda mensal de Egídio não ultrapasse os R$ 16 mil, há indícios de que ele pagava o curso de Medicina do sobrinho, na Universidade Cidade de São Paulo (Unicid), cuja mensalidade cobrada por mês era de cerca de R$ 13 mil. Em perícia no celular do padre, os investigadores encontraram uma conversa, onde o jovem pergunta ao tio: “Conseguiu pagar o boleto deste mês?”, e ele responde que “sim”. Para comprovar que de fato o garoto não teria condições de arcar com os valores daquela faculdade, o Gaeco apurou que, em 2020, o rapaz era beneficiário do auxílio emergencial do governo federal.
O último ato do trio, narra o MPPB, foi justamente se movimentar para apagar o maior número possível de provas, quando desconfiaram que estariam sendo investigados. Egídio teria dado ordem para que todos excluíssem de seus celulares e computadores mídias e conversas que pudessem comprometê-los. A tentativa de destruição de provas foi atestada pelos investigadores quando começaram a analisar os aparelhos.
O Ministério Público ainda investiga a participação de mais pessoas no esquema supostamente comandado pelo padre.
Verbas seriam destinadas a pessoas em situação de vulnerabilidade
As prisões ocorreram por determinação do desembargador Ricardo Vital, do Tribunal de Justiça da Paraíba. O magistrado justificou a decisão com o argumento da manutenção da ordem pública, a conveniência da instrução criminal e a garantia da aplicação da lei penal.
Conforme a investigação do Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público da Paraíba, as verbas desviadas seriam destinadas a programas sociais como distribuição de refeições a moradores de rua, amparo a famílias refugiadas da Venezuela, apoio a pacientes em pós-alta hospitalar, realização de cursos profissionalizantes, preparação de alunos para o Exame Nacional de Ensino Médio e cuidados a pacientes com Aids.
Os desvios, segundo o órgão acusador, teriam comprometido gravemente o atendimento prestado pelo Hospital Padre Zé às populações carentes e necessitadas. Em nota, a Arquidiocese da Paraíba informou que colabora “integralmente com as investigações em curso, respeitando o segredo de justiça estabelecido pelas autoridades competentes”. E acrescentou que padre Egídio tem advogado próprio, sendo ele responsável pela defesa e interesses de seu cliente.
A Arquidiocese da Paraíba disse ainda que um processo Canônico foi instaurado em 27 de setembro deste ano “e está seguindo seus trâmites normais”. A reportagem não conseguiu contato com a defesa dos acusados.
O Globo