Por Hermes C. Fernandes
Nada mais ambíguo do que o sexo. Talvez por isso, Rita Lee tenha cantado que “amor é cristão, sexo é pagão”. Apesar de admirá-la como uma das mais completas artistas do rock nacional, devo discordar, mesmo lhe dando licença poética. Nem o amor, nem o sexo envolvem necessariamente religião. Mas entendo perfeitamente o que ela quis dizer. De fato, o cristianismo valoriza o sentimento em detrimento do prazer, como se fossem mutuamente excludentes. O amor também pode ser pagão. “Quem ama, conhece a Deus”, afirma o apóstolo João. Portanto, nem mesmo amantes ateus ficam de fora. Se há amor, ali Deus está, independentemente da crença ou da não crença. O mesmo se dá com relação ao sexo. Sim, o sexo pode ser cristão. O que não significa que tenha que ser pudico, sem graça, sem sal, cheio de escrúpulos e tabus.
Se por um lado o sexo pode ser um instrumento de comunhão, de afeto, de expressão do amor, por outro, pode se tornar num aguilhão, capaz de nos transformar em escravos de nossos mais primitivos impulsos, despersonificando-nos, coisificando-nos. E assim, em vez de nos sentir ALGUÉM, passamos a nos sentir como um mero ALGO, abdicando-nos do propósito de amar e ser amados, por nos satisfazer com tão pouco que é usar e sermos usados.
Tudo o que extrapola os limites do bom senso deixa de ser saudável para ser nocivo ao ser. O bom apetite se torna em gula. O sono reparador em preguiça. O bem disposto trabalhador se torna num workaholic. O beber socialmente cede ao alcoolismo. O mesmo se dá com o sexo. Num movimento pendular, saímos de um extremo ao outro. Quase que repentinamente, o sexo deixou de ser visto apenas como um meio de procriação para se tornar na mola que move o mundo. Não é exagero afirmar que há sexo para todo lado! Nas propagandas, na música, nas artes plásticas, nos filmes, novelas e séries de TV. Às vezes, de maneira sutil e sugestiva, doutras vezes, de maneira explícita. O mundo parece respirar sexo. E assim, o que era saudável alcança as raias da insalubridade. O bom e velho sexo cede à promiscuidade. Conquanto o sexo seja bom e aprazível, a promiscuidade o torna sujo e repugnante, pois em vez de nos dar a sensação de plenitude tão esperada, produz uma profunda sensação de vazio existencial.
Deus não inventou o sexo apenas para a perpetuação da raça, como advogam alguns, e, sim, para ser uma expressão de amor, carinho e cumplicidade entre dois seres que se amam.
Estou convencido de que o sexo é uma das mais belas criações de Deus. Sexo é vida! Sexo é prazer! Sexo é festa! Mas também pode se transformar num instrumento de opressão e dominação. Por isso, o apóstolo Paulo diz que cada um deve saber “controlar o próprio corpo de forma santa e honrosa, não dominados pelo desejo desenfreado (...) e que, nesta matéria, ninguém oprima ou engane a seu irmão” (1 Tessalonicenses 4:4-5). Não confunda “santidade” e “honra” com pudor e moralismo.
Sexo santo não é sexo pudico, mas sexo que respeita a sacralidade do corpo alheio. Sexo santo é sexo consentido. Controlar o próprio corpo de forma santa e honrosa é não ultrapassar o perímetro do outro. Sexo sujo é todo aquele que só tem o objetivo de obter prazer, ignorando o dever de proporciona-lo ao outro. Desonrar o corpo alheio é força-lo a fazer o que não quer, submetendo-o a dores ou situações vexatórias e constrangedoras. Se um não quer, os dois não fazem. Não é não, e ponto. Não há o que se discutir.
Cada um deve estabelecer seu próprio perímetro, pois conhece seus limites. Cabe ao outro respeitar. Porém, qualquer coisa é lícita desde que mutuamente consentida.
Não há lugar para imposição, mas para a sedução. Limites podem ser eventualmente ultrapassados, desde que o convite a isso parta do outro. É sempre do outro a última palavra.
Cara de pau é todo aquele que recorre a textos bíblicos para justificar sua canalhice. E um dos textos mais usados está na carta de Paulo aos Coríntios.
“A mulher não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas tem-no o marido. Do mesmo modo o marido não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas tem-no a mulher. Não vos priveis um ao outro, senão por consentimento mútuo por algum tempo, para vos aplicardes à oração.” 1 Coríntios 7:4-5a
É importante frisar que esta passagem não consiste num mandamento apostólico, mas de uma concessão que parte da percepção particular de Paulo (v.6). O que Paulo está defendendo aqui não um estupro doméstico como tem acontecido em muitos lares cristãos. Paulo não está falando da mulher que, por estar indisposta, se nega a atender às investidas amorosas do marido. Ele se refere ao homem ou mulher que usam a religiosidade como desculpa para privar o outro de seu carinho e do próprio ato sexual em si. Em outras palavras, Paulo está dizendo: Permitam-se! Vocês pertencem um ao outro. Não usem a oração como pretexto, a menos que haja consentimento mútuo neste sentido.
Não somos sex machines. Nem todo dia estamos a fim de transar. Há dias em que a gente prefere ocupar a mente com outras coisas. Sexo é bom demais, mas não é tudo. A relação entre pessoas que se amam vai além dos desejos físicos.
Recentemente, um jovem pastor twitteiro que oferece um curso chamado “Teologia Brutal” abriu seu instagram para perguntas. Observe a resposta oferecida a uma dessas “perguntas light” (foi assim, de modo irônico, que ele se referiu à questão).
Internauta: “Se não estiver afim de fazer sexo com marido, tenho que fazer sem vontade?”
Resposta do pastor Jack: “Geração idiota que só faz o que tem vontade. Se teu marido estiver com vontade de te colocar um chifre, ele pode? Se der vontade de te dar um soco ele pode? Óbvio não. Ele tem que te servir. Tem que te amar! Tem que morrer por ti. Qual o problema de deixar ser convencida? De se deixar ser excitada por ele? Qual o problema???? Vocês estão fadados a viver suas vidas de bosta pois só fazem o que querem. Somente bicho vive assim! Deus nos fez a sua imagem e semelhança! Não viva como bicho! Viva como imagem de Deus!”
Oi? Viver como imagem de Deus é isso? Então, devo imaginar que se Jesus estiver batendo à porta, e ninguém atender, ele simplesmente a arromba? Não foi justamente esta a figura usada por Jesus em Apocalipse?: “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo” (Apocalipse 3:20). Uau! Este é o meu Jesus, de quem espero ser imagem e semelhança. Ele ceia conosco, e nos chama a cear com Ele. Em outras palavras, o prazer deve ser mútuo e não apenas de uma das partes. Ele bate à porta, mas não invade o domicílio do coração humano. Mesmo tendo a chave que abre qualquer fechadura, Ele prefere bater à porta e esperar ser atendido. Jesus é mesmo um Gentleman. Ele jamais estupraria a alma humana.
Os bichos são guiados pelo instinto. Deu vontade, fez. Mas mesmo assim, ele respeita o cio da fêmea. Há homens muito piores do que os bichos. Agem, não por instinto animal, mas por impulsos que deveriam controlar.
Idiota é quem se deixa usar como mero objeto, sem respeitar o próprio corpo e a vontade. Mais idiota ainda é quem impõe seu desejo, sem levar em conta o desejo do outro.
Por favor, não use a Bíblia para julgar e sentenciar pecadores, enquanto usa trechos isolados para justificar sua misoginia, seu machismo e sua incapacidade de seduzir sem apelar a chantagens e expedientes indignos. Ame seu parceiro. Entregue-se sem culpa. Permita-se o prazer. Mas jamais desrespeite o sentimento e os escrúpulos de ninguém.
Casamento não significa sexo grátis a hora que quiser. Casamento, com ou sem papel, significa companheirismo, cumplicidade, confiança, respeito, lealdade e, sobretudo, amor.