Postado em: 8 de maio de 2023 | Por: Ezequiel Neves

"Antes de me assumir travesti, não tinha receio das ações policiais", diz major que pode ser expulsa da Polícia Militar

Com 25 anos de carreira, a oficial Lumen deve passar por avaliação de sua capacidade moral e profissional após iniciar transição de gênero

“A partir do momento que me reconheci como travesti, foi quando consegui atravessar o espelho e ver quem eu realmente sou”, contou a major Lumen Lohn, a primeira oficial travesti da Polícia Militar de Santa Catarina (PMSC).

 

Com a transição de gênero iniciada em setembro do ano passado, Lumen, que tem 43 anos, nasceu em Santo Amaro da Imperatriz, cidade de Santa Catarina com pouco mais de 23 mil habitantes. No município considerado por ela como pequeno e ‘bucólico’, foi onde não apenas entendeu sua transgeneridade, mas onde viu nascer, ainda na infância, o desejo de se tornar policial militar.

 

A relação com o militarismo, de acordo com ela, é fruto de uma herança familiar. Filha de um coronel da reserva da PM, hoje com 70 anos, Lumen conta que cresceu literalmente ao lado do quartel, uma vivência que dividiu espaço com uma sensação de inadequação que começou a ser sentida por volta dos 11 anos de idade.


Lumen, em sua primeira vez usando farda feminina

 

“Eu nunca tinha me visto como eu realmente sou. Quando me olhava no espelho, sempre me via de forma distorcida, com uma sensação até então incompreendida de inadequação. E sempre foi assim, até o momento em que me entendi enquanto travesti e passei a, de fato, me enxergar”, disse a major, hoje com 25 anos de carreira.

 

Apesar do imaginário negativo que se cria ao associar o militarismo com o processo de transição de Lumen, a oficial conta que não houve conflitos com a Polícia Militar em um primeiro momento. Foi através de uma apresentação de powerpoint, em janeiro deste ano, que a major discutiu sobre a existência de pessoas trans e travestis e oficializou sua apresentação enquanto Lumen aos seus companheiros de trabalho.

 

Desde o início da transição, Lumen recebeu o apoio da esposa, a professora Lisiane Freitas, de 44 anos

 

“Mesmo tendo iniciado a transição em setembro, fiz uma apresentação de powerpoint, bem didática, depois que já tinha informado meus familiares e dado início a terapia hormonal. Foi tudo planejado. As reações foram ótimas, algo que me comove até hoje”, contou.

 

Na família, as coisas não foram diferentes. De acordo com Lumen, tanto seu pai, quanto sua mãe, professora aposentada de 77 anos, lidaram muito bem com a notícia sobre sua transição. Além deles, o apoio e o carinho recebidos da esposa, a professora Lisiane Freitas, de 44 anos, e dos filhos, de 20, 11 e 7 anos, são considerados pela oficial como essenciais durante o processo.


Conselho de Justificação

 

Governador Jorginho Mello (PL) durante discurso com a Polícia Militar de Santa Catarina


Embora a reação dos policiais mais próximos tenha sido positiva, foi em abril que Lumen descobriu que, após pedido de superiores da PM, o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), determinou a abertura de um Conselho de Justificação - colegiado que julga oficiais - para avaliar sua “capacidade moral e profissional”. O pedido, realizado pela PM em dezembro de 2022, quando Lumen já havia dado início a transição, pode resultar em expulsão ou aposentadoria compulsória.

 

Assinado por Jorginho no dia 24 de abril, o ato foi publicado no Diário Oficial do Estado (DOE), onde Lumen é erroneamente tratada no masculino, mesmo com o processo de retificação de nome - termo jurídico utilizado para incluir, excluir ou alterar o prenome ou sobrenome originalmente atribuído a uma pessoa - já concluído.

 

Em nota enviada pela Polícia Militar de Santa Catarina, a corporação destaca que o processo originou-se na administração anterior em virtude de relatos de condutas profissionais consideradas inadequadas e que estão sendo apuradas no decorrer do processo, que tramita em sigilo até o momento. De acordo com a corporação, existem 17 infrações que teriam sido cometidas pela major entre 1999 e 2020. A PM também afirma que, quando o processo foi instaurado, a transição de Lumen não fazia parte do conhecimento da corporação.

 

Em ato assinado pelo governador Jorginho Mello, a major Lohn teve sua identidade de gênero desrespeitada

 

De acordo com a major, mesmo que sua apresentação enquanto Lumen tenha sido formalizada em janeiro, seu processo de transição já havia sido iniciado meses antes do processo administrativo. A oficial e sua defesa também afirmam não haver crime militar na lista mencionada pela PM e que o Conselho de Justificação, onde corre o processo, desconsidera infrações prescritas após seis anos.

 

“O que me deixa mais chocada nisso tudo é que não tem mais ninguém se posicionando contra essa situação. As pessoas não estão vendo que isso não é só sobre mim, sobre Lumen e a transição, mas sobre uma ilegalidade flagrante e um precedente perigoso", lamentou Lumen.

 

O Terra também entrou em contato com a assessoria do governador Jorginho Mello (PL), mas não houve resposta até o momento da publicação.



Corpos trans e as ações policiais

 

Além da carreira militar, Lumen também é voluntária do 'Projeto Integrar', onde dá aulas de matemática para vestibulandos em situação de vulnerabilidade social

Fotos: Reprodução


De acordo com o dossiê anual “Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras” de 2022, realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), o Brasil é o país que mais mata transexuais e travestis no mundo pela 14ª vez consecutiva. Apesar disso, a relação entre instituições de segurança pública e pessoas não-cisgêneras ainda é baseada na ausência de respeito e humanidade, na opinião de Lumen.

 

“Antes da minha transição, nunca havia me passado pela cabeça ter medo de ação policial. Nunca tive receio. Mas hoje, tenho medo de alguém me parar e perceber que sou uma travesti. Só me pego pensando que, caso isso aconteça, vou gritar que sou da polícia também”, disse a major.

 

Questionada sobre o papel social da PM, Lumen comenta que existem uma série de iniciativas que rompem com a visão comum de que a polícia atua apenas "para prender bandido", como é o caso da "Rede Catarina", que visa a proteção de mulheres em situação de vulnerabilidade. Além disso, a major comenta que um dos motes do atual comando é cuidar das pessoas, o que reforça a importância da diversidade dentro das corporações.

 

“A população trans, em geral, vive uma relação de medo com a polícia. Não porque a população trans comete crimes, mas porque o tratamento é sempre agressivo e desrespeitoso. Por isso, acredito que ter pessoas trans e travestis dentro das corporações pode ser um dos caminhos para que a polícia se torne menos transfóbica em sua atuação”, finalizou Lumen.

 

Fonte: com informações do Portal Terra 

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